Para Frank e todos os primos americanos
Os pais viviam da agricultura, cultivo de vinhas e fabrico de vinho mas também produção hortícola e florestal. Criavam galinhas, perus, patos, coelhos para uso doméstico e por vezes para venda. Na terra anexa à residência, Manuel para além da vinha plantara uma grande variedade de árvores de fruto para consumo da família. Depois montou um negócio de compra de uvas e fabrico de vinho.
1946 Prof. Ilda, Vilar, escola primária da Casa do Povo, Raimundo é o 5º, na 1ª fila a contar da esquerda |
Raimundo e Helena com a mãe 1942 |
Na minha escola de instrução primária (4 primeiros anos) a professora obrigava-nos a aguardar em grupo a sua chegada e a cumprimentá-la com a saudação fascista de braço estendido, mas tratava-nos muito bem.
A aldeia era profundamente católica, a maioria da população adulta era analfabeta. A sua cultura e ideologia era a que o padre dispensava nas missas e sermões. O ditador Salazar era tido por santo.
O avô João vivia em nossa casa e faleceu em 1940, com 92 anos. Era muito religioso e quando já não conseguia ir à igreja rezava em casa.
Raimundo 2º da esquerda |
A par das aulas frequentava a Associação de Estudantes (AE) e o movimento estudantil muito politizado e uma das principais frentes de luta contra a ditadura pela liberdade, contra a censura prévia e pela democracia.
Tudo o que fosse publicado, jornal ou livro, era submetido previamente a uma equipa de censores do Governo, que cortava notícias ou proibia livros.
1961 "Dia do Estudante" cultura e politica pela liberdade e a democracia, na Associação de Estudantes do IST. |
Com o início das guerras coloniais na Guiné (Bissau), Angola e Moçambique o Governo mobilizou toda a juventude para as forças armadas, para as guerras coloniais. Neste contexto tive de interromper o curso três vezes, para 1961 "Dia do Estudante" cultura e política pela liberdade prestar serviço militar obrigatório e a democracia, na Associação de Estudantes do IST. como oficial do Exército e preparar soldados e sargentos que seguiam logo para as guerras em África.
Entretanto a minha irmã Helena Maria veio também para a Universidade em Lisboa, para a Faculdade de Ciências onde se licenciou em ciências biológicas. Algum tempo depois seguiu para Paris acompanhando o marido, Jaime Mascarenhas, que fugia à perseguição política. Após o derrube da ditadura voltou para Portugal com o marido e a filha, Helena Maria Narciso Mascarenhas, com 3 anos de idade e trabalhou como professora, em Lisboa, até se reformar.
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Na clandestinidade Raimundo com Maria e com a filha Leonor |
Foi, no entanto, uma decisão amadurecida até me convencer que, como era "obrigatório", conseguiria resistir a todas as torturas policiais, com o risco da própria vida, para não denunciar nada nem ninguém. Conhecia os relatos de muitos torturados até ao limiar da morte. Tomei a decisão da clandestinidade sem consultar a família, sem consultar a namorada. Foi um choque terrível para todos.
A criação da "Acção Revolucionária Armada - ARA" foi muito difícil.
Mais de uma centena de prisões no PCP obrigou a interromper a criação da ARA por um ano tendo ido então frequentar um curso em Moscovo de Julho de 1966 a Junho de 1967, Um dos presos sofreu terríveis torturas e a ele devo não ter sido preso.
No curso de Moscovo, Economia Política, Filosofia, História, língua Russa, conheci a Maria Machado, a minha mulher, jovem de 18 anos e decidimos casar quando regressássemos a Portugal o que aconteceu em 1968 e passou a viver comigo na clandestinidade. Ela já antes vivera alguns anos com os pais também clandestinos. A ARA foi criada como uma organização não terrorista, não matou ninguém. As acções armadas eram realizadas de modo a não atingirem pessoas.
Um dos objectivos da ARA era que as suas acções dessem esperança e confiança aos trabalhadores, aos estudantes, às classes médias para impulsionarem as suas lutas pacíficas, protestos, greves, manifestações até uma insurreição geral que derrubasse a ditadura, com a ajuda de militares.
O armamento e muitas informações para atingirmos os alvos vinham das nossos ligações às forças armadas.
A direcção principal da luta era a sabotagem da logística das guerras coloniais. Uma das mais importantes acções armadas foi a destruição da quase totalidade dos aviões e helicópteros de treino de pilotos para as guerras nas colónias no interior do quartel da Base Aérea nº 3, situada no maior polígono militar nacional, em Tancos (centro do país). Link:
https://tinyurl.com/yd7sczyoconstituído por mim e dois veteranos do PCP, Jaime Serra, já com muitos anos de clandestinidade intervalados por quatro prisões num total de 6 anos e Francisco Miguel com um total de 22 anos de prisão, muitos deles no campo de concentração do Tarrafal na antiga colónia e actual República de Cabo Verde.
Publicada pela PIDE na TV e jornais em 1972/73 |
https://tinyurl.com/y8cpu6k2 ou https://tinyurl.com/y9sm985mEm 1972 e 1973 a PIDE procurava intensamente a direcção da ARA e colocou a minha fotografia e dos outros dois membros do Comando Central, nos jornais e na televisão oferecendo um prémio a quem ajudasse a encontrar-nos. Foram raros os clandestinos que passaram dez anos seguidos na clandestinidade sem serem presos. Viver na clandestinidade, dando a aparência de uma vida normal, era uma arte!
Por razões de defesa só pude estar com os meus pais, infelizmente, uma única vez, nestes 10 anos, em 1970 e Manuel faleceu em 1972.
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Vídeo da manifestação do 1º de Maio de 1974 de Lisboa: https://tinyurl.com/yaxf76zf |
A minha mãe a partir de 1974 passou a viver ora comigo ora com a minha irmã e faleceu em 2000, com 97 anos.
A minha filha, Ilda Leonor (n. 1969), licenciou-se em Engenharia de Materiais, fez um mestrado, foi professora. O José n. 1974) ficou-se pelo primeiro ano da Universidade casou e empregou-se.
A minha sobrinha Helena Mascarenhas doutorou-se em Matemática e é professora na Universidade. Casou com Carlos Florentino, professor na universidade e têm dois filhos, Miguel com 14 anos e Bruno com 11.
No PCP a minha actividade em todo este período foi fundamentalmente junto dos oficiais das Forças Armadas mas também nas relações internacionais em reuniões e conferências internacionais que me levaram a muitos países da Europa, incluindo à União Soviética, onde fui condecorado, em 1965, pelo presidente Mikoyan e em 1985, por Gorbatchov assim como a alguns países de África e a Cuba.
A Maria Machado era responsável por várias organizações do PCP, no estrangeiro, e trabalhava também na imprensa do partido.
Tínhamos um salário equivalente ao de um operário qualificado igual para todos os funcionários do PCP, do Secretário-Geral, à mulher da limpeza. Mais tarde passou a haver diferenciação nas remunerações.
A partir de Junho de 1975 uma parte dos capitães que fizeram o levantamento militar e acompanharam a revolução dirigida principalmente, mas não só, pelo PCP assustou-se com a radicalização da revolução, aliou-se aos militares de direita, teve o apoio do Partido Socialista e dos partidos de direita e executou um golpe militar em 25 Nov/75 que pôs fim à revolução.
Em Agosto/Setembro de 1975 organizações de extrema-direita, com alguns militares e o apoio da hierarquia da Igreja, mas não da maior parte dos católicos, desencadeou acções terroristas atacando e incendiando instalações de sindicatos e de sedes do PCP e de outros partidos de esquerda, no centro e Norte do país.
A Maria Machado decidiu abandonar o PCP algum tempo depois da minha saída. Empregou-se como secretária num sindicato e depois como secretária do Ministro dos Transportes e Comunicações, tendo-se reformado em 2012.
Em 1989 com outros organizámos um movimento político, Instituto Nacional de Estudos Sociais e debates públicos, por todo o país, com a participação de muitos dos mais conceituados intelectuais incluindo o prémio Nobel da Literatura. Reunião em Lisboa que lançou publicamente o INES. Raimundo é o 3º a contar da esquerda e José Saramago é 5º. Na mesa vêem-se intelectuais e sindicalistas dos mais conhecidos e prestigiados do país.
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Reunião em Lisboa lançou publicamente o INES. Raimundo é o 3º a contar da esquerda e José Saramago é 5º. Na mesa vêem-se intelectuais e sindicalistas dos mais conhecidos e prestigiados do país. |
Raimundo ao centro e António Guterres á direita. Foto do Jornal Público de 1992-02-06 |
No Parlamento Raimundo foi eleito secretário da Comissão Parlamentar de Defesa Nacional e por inerência passou a participar regularmente nas reuniões da Assembleia Parlamentar da NATO, realizadas duas vezes por ano nos diferentes países membros.
Em 2008 fui um dos fundadores de uma associação para a defesa do património e da memória da luta contra o fascismo e a ditadura que governou Portugal 48 anos, de 1926 a 1974. Tem o nome de "Movimento não Apaguem a Memória - NAM" - e fui presidente da direcção em três mandatos, 2008-2012 e 2014-2016. O NAM está na origem do novo Museu do Aljube, em Lisboa, dedicado à Memória da Resistência à ditadura em cujo Conselho Consultivo participo; Link: http://www.museudoaljube.pt/
O edifício vem do tempo da ocupação muçulmana de Lisboa, nos séculos VIII ao XII. Sofreu remodelações ao longo do tempo e foi durante o Governo de Salazar uma prisão política, com celas de 3 x 1,5 metros, sem luz, um horror, onde os presos chegaram a passar muitos meses, isolados sem recreio nem visitas.
O NAM realiza regularmente de conferências, estudos, visitas e debates, dois deles nas instalações do Parlamento e um no antigo campo de concentração do Tarrafal, nas ilhas de Cabo Verde, antiga colónia Portuguesa e actual República de Cabo Verde, em África, que teve a participação do então presidente da República de Cabo Verde, Pedro Pires e do ex-presidente da República Portuguesa, Mário Soares, um apoiante do NAM, ele e sua mulher, Maria Barroso, já falecidos.
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Pedro Pires, então presidente da República de Cabo Verde, discursa no encontro promovido pelo NAM em conjunto com a presidência da República de Cabo Verde e a Fundação Mário Soares (Lisboa), em memória dos prisioneiros do campo de concentração do Tarrafal criado pelo ditador Salazar em 1936 para presos políticos inspirado nos campos de concentração nazis e encerrado em 1956. Foi reaberto em 1961 para presos políticos das colónias portuguesas em guerra. No debate estiveram ex- presos das antigas colónias portuguesas e alguns sobreviventes do primeiro período. Das muitas realizações do NAM deixo mais umas fotografias do local onde se situava a sede da polícia política, a PIDE, no centro de Lisboa. Realizámos uma grande manifestação nesse local, autorizados pelo "mayor", com a participação de alunos universitários e professores da Faculdade de Belas Artes de Lisboa e de antigos presos políticos que pintaram um painel gigante de denúncia da PIDE. |
Nas imagens em baixo Raimundo e António Costa, então "mayor" de Lisboa, inauguram uma sinalização da antiga sede da PIDE, com uma placa em bronze.
Raimundo publicou 4 livros, um deles colectivo, estudos e trabalhos
principalmente sobre Defesa Nacional e as Forças Armadas Portuguesas e em
especial sobre o Serviço Militar, a NATO, em revistas da especialidade como
a do ministério da Defesa
Nacional https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/1467/1/NeD091_RaimundoNarciso.pdf ; https://tinyurl.com/y6uwe46b ou da
Universidade Autónoma de Lisboa
https://tinyurl.com/y9lcg8jz
Lisboa, 18/11/2017
Raimundo Narciso